Presidente da República volta a defender gradualismo no processo autárquico
O Presidente da República, João Lourenço, voltou a considerar o gradualismo como a via mais segura e aconselhável para a concretização das eleições autárquicas no país.
Em entrevista à estação radiofónica Voz da América (VOA), em Washington, o Chefe de Estado apontou a necessidade do gradualismo, por ser uma novidade, segundo afirmou.
“Em Angola, nunca houve eleições autárquicas”, sublinhou, argumentando ser mais seguro começar-se por um certo número de municípios e ir-se avançando gradualmente pelo país no seu todo.
A este propósito, o Chefe de Estado disse que a decisão final caberá ao Parlamento, após a aprovação do pacote legislativo autárquico.
Em relação ao investimento privado norte-americano, em Angola, o Presidente João Lourenço destacou as áreas energética, a agricultura, a transformação dos minérios, o turismo e os transportes.
Leia na íntegra a entrevista:
Voz de América (VOA): Para além daquele acordo que nós sabemos, de dois mil milhões de dólares, queria perguntar-lhe em que Angola está interessado em ter os Estados Unidos a investir? E a curto prazo? O que é que se pode esperar desta relação em termos económicos?
Presidente da República (PR) - Eu vou começar por falar da Cimeira em geral. A nosso ver foi uma cimeira muito boa. Nós, os países africanos, saímos daqui satisfeitos. Cremos que foi atingido o objectivo pelo qual o Presidente Joe Biden realizou esta cimeira, na medida em que ficou a garantia de financiamento americano, financiamento público para as infra-estruturas de que o continente necessita, mas também créditos à exportação para empresas americanas que queiram fazer investimento privado em África. E com números! Portanto, não foi conversa no ar, muito abstracta, foi muito concreto nos números de quanto é que vai dar para o investimento público em infra-estruturas públicas, quanto é que vai dar nos próximos anos para o crédito à exportação às próprias empresas americanas. É uma forma também de fazer crescer as empresas americanas e resolver a nossa grande necessidade de investimento privado nos nossos países.
Por outra lado, consideramos ter sido um ganho, um ganho político, chamemos-lhe assim, pelo facto de o Presidente Joe Biden se ter comprometido que vai acontecer o que ele anunciou, a entrada da União Africana como membro permanente do G20, isso por um lado, mas, por outro lado, também a possibilidade de o nosso continente e América Latina virem a estar representados no Conselho de Segurança das Nações Unidas como membros permanentes. Aliás, reclamação que nós, os países africanos, da América Latina, da Ásia, temos vindo a fazer há mais de 40 anos. Neste aspecto, devemos dizer que foi bastante produtiva e vamos agora é ver as formas da implementação de tudo isso.
Em relação ao nosso interesse no investimento privado americano, em que áreas? Em todas, praticamente, para além daquelas onde eles já estão há décadas, que é no sector dos petróleos. Portanto, além disso, nós pretendemos ver o investimento privado americano na transição energética - investir em fontes renováveis de energia e na agricultura, na transformação dos nossos minérios.
Nós queremos industrializar os nossos países, não queremos continuar a ser meros exportadores de matérias-primas, e houve esse compromisso da parte dos americanos. Eles sim vão ajudar nesse sentido.
Queremos ver as empresas americanas a entrar no turismo. Já começam, sobretudo no turismo de conservação. É uma empresa americana que ganhou o concurso para a gestão do Parque do Iona, e vai estender-se esse entendimento também para o parque do Luengu-Luiana, no Cuando Cubango.
Em relação ao sector dos transportes, concretamente na gestão dos portos, dos aeroportos, e de outras grandes infra-estruturas que nós queremos concessionar, não queremos que seja o Estado a gerir essas grandes infra-estruturas. Portanto, de uma forma geral, é isso, estamos satisfeitos com a cimeira.
VOA: O senhor Presidente mencionou a questão do G20. Já agora tem havido uma notícia de que o senhor Presidente teria sido um dos dirigentes africanos que terá pressionado o Presidente Joe Biden a aceitar a integração da União Africana no G20. Isso tem algum fundamento?
PR- Somos todos nós, todos nós fizemos essa pressão, portanto não há aqui ninguém que se tenha destacado nessa pressão que foi feita no sentido de se fazer justiça. Nós consideramos isso uma questão de justiça, entendemos que a África não pode ser posta de lado na resolução dos grandes problemas que afligem o Universo. África pode contribuir mais, contribuir com ideias, contribuir com a sua própria economia. Podemos oferecer muito mais ao mundo do que aquilo que temos vindo a oferecer nos dias de hoje.
VOA: Eu notei que no encontro que manteve com o Secretário de Estado americano, em que estava também o Secretário da Defesa, disse que Angola está interessada em algumas aquisições nos Estados Unidos. Ele disse que o Departamento de Defesa está em ligação com o Departamento de Estado para avaliar esse pedido de Angola. A que é que o Secretário da Defesa se estava a referir?
PR- Nós queremos ver os Estados Unidos da América participar do nosso programa de reequipamento militar. Como sabe, até hoje as nossas Forças Armadas têm apenas a chamada técnica soviética. Nós entendemos que é chegado o momento de darmos o salto para rearmarmos as nossas Forças Armadas também com equipamento da OTAN e olharmos para os próprios Estados Unidos como parceiro ideal para nos ajudar a fazer essa transição. Portanto, para ser claro, é a isso que ele se referiu.
VOA: O Senhor Presidente tem exercido um papel muito importante na mediação entre o Rwanda e a República Democrática do Congo, por causa do conflito no Leste do Congo Democrático. Neste momento, quem é que tem que fazer mais pela estabilização do Congo, Rwanda ou o Congo?
PR- Pela estabilização na República Democrática do Congo temos que fazer mais todos nós. E, quando digo todos nós, estou a referir-me às duas regiões, nomeadamente a Região dos Grandes Lagos e a Região da África Oriental. Portanto, a localização geográfica da RDC e particularmente a zona do conflito, que é no Leste ou nordeste da RDC, encontra-se num ponto em que fazem parte as duas regiões. Daí o envolvimento das duas.
Nós estamos a trabalhar em conjunto. Por isso é que se fala de Entendimentos de Luanda, Entendimentos de Nairobi, mas estamos numa perfeita sintonia. Não há atropelos de tipo nenhum, não há sobreposição de tarefas e tudo estamos a fazer no sentido de que cada um faça a sua parte e em conjunto consigamos alcançar a paz.
VOA: Está optimista?
PR- Sim, estamos, estamos optimistas. Aqui mesmo em Washington D.C, Angola, Quénia, Rwanda, o Burundi, a Tanzânia, Uganda, o Sudão do Sul encontrámos-nos - juntou-se a própria RDC, que no dia anterior esteve ausente, por razões de calendário não pôde estar, mas Angola e o Burundi ficaram com a responsabilidade de transmitir ao presidente Félix Tshisekedi o que tínhamos abordado no dia anterior, e eu devo dizer que estamos optimistas.
Do Roteiro de Luanda o que está cumprido até aqui foi a cessação das hostilidades no dia indicado, 25 de Novembro, mas estamos em condições de dar os passos seguintes que é o acantonamento, desarmamento e depois a parte mais política que será a da reinserção dos congoleses integrantes do M23 - porque eles são nacionais, são congoleses -, na sociedade congolesa.
VOA: Recentemente o Senhor Presidente falou da possível revisão da Constituição. Posteriormente, tem havido notícias sobre o que isso implica e não implica. A pergunta que gostaria de fazer é se o Presidente está disposto a pôr de parte, a descartar, digamos assim, uma mudança ao limite de mandatos presidenciais?
PR - Quando se fala da possibilidade - veja bem o que estou a dizer: possibilidade, não necessidade -, da possibilidade de qualquer revisão constitucional, não se está a falar necessariamente da possibilidade de alteração do número de mandatos que o Chefe Estado em funções pode ou deve ter, não se está a falar necessariamente disso, e a prova disso é que, em 2021, fizemos uma revisão à nossa Constituição e, naquela altura, nunca ninguém falou nessa possibilidade, porque quando há uma revisão constitucional alguém tem de apresentar uma proposta em concreto e dizer o que é que pretende que se mexa na Constituição.
Então, se em 2021 não houve essa pretensão, por que razão é que as pessoas hão-de pensar que, no caso de se voltar a mexer na Constituição, é porque existe a intenção de alterar o número de mandatos do Presidente da República?
Eu acho que isso é um falso problema. Nós nunca nos referimos a isso. Sempre dissemos que a Constituição e a lei são para ser cumpridas, e portanto vamos cumprir.
VOA: Tem havido um aumento, por parte do seu governo da chamada contratação simplificada, o ajuste directo, creio que é assim que se fala...
PR - Não é a mesma coisa. Contratação simplificada não é ajuste directo. Ajuste directo é chegar e dizer: “você é que vai fazer essa obra”. Contratação Simplificada é algo que é previsto na lei. É uma forma de contratação, é uma das modalidades de contratação previstas na lei.
VOA: Tem havido acusações por parte da oposição, de certeza que está ciente disso, de que está a usar isso para favorecer uma nova elite, criar uma nova elite que o irá apoiar. O activista Rafael Marques disse mesmo aqui em Washington D.C que existe o que ele chamou “o sistema patrocínio” através desse sistema de ajuste directo. O que é que o Presidente responde?
PR - Eu desminto essas afirmações. Portanto, nós não estamos à espera de favores de ninguém. Se eles tiverem elementos que apontem nesta direcção então que os exponham em cima da mesa. Nós estamos dispostos a ouvi-los.
VOA: As acusações da empresária Isabel dos Santos que o acusa pessoalmente de perseguição e de usar a PGR para perseguir a família dela….Houve recentemente um mandato de detenção que foi emitido pela PGR, ela disse que isso faz parte de uma investigação selectiva. Como é que reage a essas acusações?
PR - Bom, eu acho que ela tem é que responder, perante a Justiça que "lhe está a perseguir", entre aspas, como ela diz. E a Justiça não persegue ninguém sem fundamento. Portanto, se a Justiça está atrás dela é porque terá fundamento e o que ela tem que fazer é provar que a Justiça não tem razão. Ela de nada ganha em estar a apontar o dedo a políticos. Ela tem que responder, perante a Justiça, com as alegações que tiver. Deve fazê-lo perante a Justiça. Isso é assim em todo o Mundo e em Angola não pode ser diferente.
VOA: Qual é o sistema eleitoral para as autárquicas que o Senhor Presidente prefere, em termos do gradualismo ou outro sistema? E como é que vê as eleições autárquicas? Antes ou depois desta nova divisão administrativa “proposta”?
PR - Em relação às eleições autárquicas, o meu partido, portanto o MPLA, defende, pelo menos até aqui, a necessidade do gradualismo, porque é uma novidade. Em Angola, nunca houve eleições autárquicas. Nós entendemos que é muito mais seguro começar por um certo número de municípios e ir avançando. A oposição não pensa assim. Pronto, ela é livre de pensar como quer, e eis a razão por que este assunto está em discussão no Parlamento.
Portanto, é o Parlamento quem vai decidir, no fim, se será gradual a implantação das autarquias ou se será de uma só vez. O Parlamento é soberano. Os partidos estão lá e é lá no Parlamento que devem discutir este assunto. E é da discussão que sai a luz, como se costuma dizer.
Sabemos que não pode haver eleições autárquicas enquanto não se concluir o pacote legislativo autárquico. Defendemos um Estado de Direito e no Estado de Direito tem que se defender o primado da lei. Portanto, sem lei não se podem fazer as eleições autárquicas. E, às vezes, fica-se com a ideia de que até aqui não se realizam as eleições autárquicas por falta de vontade política do Presidente ou do partido MPLA. Isso não é verdade, porque quem teve a iniciativa de, pela primeira vez, falar da necessidade das autarquias fui eu, em Conselho da República e, tão logo isso aconteceu, demos início à preparação das propostas de leis - são várias leis, não é uma lei, são várias leis - que deram entrada na Assembleia Nacional e que, na sua maioria, estão todas aprovadas.
Portanto, quem teve a iniciativa, quem anunciou, teve a iniciativa imediatamente de produzir as propostas e remetê-las à Assembleia Nacional. A Assembleia Nacional, obviamente, com o apoio do MPLA, aprovou todas elas, com excepção de uma que não foi aprovada porque encontrou dificuldades, apenas por essa razão. Então, é preciso que a nível do Parlamento essas dificuldades sejam ultrapassadas.
VOA: O Senhor Presidente rejeita a acusação de que essa lei que falta aprovar está a ser propositadamente atrasada para que não sejam realizadas as autarquias?
PR - Com certeza que rejeito esse ponto de vista. Agora em relação à outra parte da sua pergunta, se o que vai acontecer primeiro são as eleições autárquicas ou a divisão político administrava, uma coisa não impede a outra. Ou seja, a divisão administrativa não vem para substituir as autarquias locais. Portanto, as duas coisas vão coexistir. É preciso que fique claro, porque às vezes fica a ideia de que “bom, agora lançaram essa nova divisão político-administrativa, vão aumentar o número de municípios e isso é para deixar no esquecimento as eleições autárquicas”. Não!
São dois poderes diferentes. O poder autárquico é um poder, e o poder do Estado é outro. A nova divisão político administrativa tem a ver com o poder do Estado, com a forma de administrar o Estado. O que é que vai acontecer primeiro, não sei. Tanto pode ser uma coisa como outra ou acontecem as duas em simultâneo. Mas uma não interfere na outra.
VOA: Os jornalistas angolanos têm feito acusações de que existe uma campanha de perseguição por parte de agentes da Polícia e também do aparelho de segurança e citam como exemplo de perseguição o facto de as casas e o Sindicato de Jornalistas terem sido assaltados com o objectivo único de roubar os computadores. O Presidente tem alguma coisa a dizer sobre essa acusação?
PR - O Sindicato dos Jornalistas diz que as suas instalações foram assaltadas duas vezes, creio, é preciso que as autoridades competentes, no caso a Polícia, faça a devida investigação para apurar quem são os responsáveis. Os responsáveis desta acção condenável não pretendem outra coisa senão responsabilizar o Governo. Mas, nós temos sido o maior defensor dos jornalistas, defendemos a liberdade de imprensa, liberdade de expressão e não faz sentido que o Governo cometa uma asneira tão grande quanto essa. Portanto, é assim que o sindicato anunciou a realização de uma grande manifestação pública de condenação a esses actos de assaltos às instalações do sindicato. Nós entendemos que essa manifestação é bem-vinda. Portanto, é um direito que lhes cabe, devem, sim senhora, se manifestar para que se faça sentir a necessidade de o Estado assumir as suas responsabilidades de investigar, o que já deve estar a ser feito. Acredito que as polícias estão a trabalhar no assunto. Portanto, que se condene quem tem que se condenar, mesmo sem se saber ainda quem são os responsáveis.
VOA: Na luta contra a corrupção qual é o valor dos bens já recuperados e qual é o destino que está a ser dado a esse fundos?
PR- Bom, esses fundos reforçam a nossa economia, com certeza. Entraram nos cofres do Estado, estando nos cofres do Estado reforçam a nossa economia. Bom, nós estimamos em cerca de quatro mil milhões de dólares, entre recursos financeiros e activos físicos, mas ainda há muito mais por se recuperar. A luta não parou por aí.
VOA: Em Outubro, creio eu, Angola votou a favor de uma resolução na ONU condenando a anexação de quatro províncias ucranianas. Esta condenação e estas suas visitas a Washington D.C indicam um resfriamento da sua relação com Moscovo ou uma mudança de orientação política?
PR - Bom, é preciso que fique claro que nós somos um país soberano, e um país soberano define a sua política externa. Portanto, como país soberano, nós entendemos que deveríamos condenar a anexação daquelas quatro regiões da Ucrânia, porque Angola é dos países que atravessou um período mais longo de guerra na história de todos os povos. Nós tivemos 27 anos de conflito armado, portanto nós sabemos o que é uma guerra.
Nós fomos vítimas de uma agressão externa, ou seja, de uma invasão militar, por parte do regime do Apartheid. Na altura, foi a então União Soviética quem nos forneceu armamento, equipamento, artilharia, aviões, tanques, etc., que nos permitiram fazer frente ao todo poderoso exército sul africano e pará-los ali no Cuito Cuanavale e, como se não bastasse, forçando-os a assinar os já conhecidos acordos de Nova Iorque, que levaram à retirada deles do nosso território, a libertação de Nelson Mandela, independência da Namíbia. E digo isso por quê? Para dizer que, se nós lutamos contra os invasores, entendemos que todos os outros povos também têm o mesmo direito de o fazer.
Não entendemos como é que quem nos ajudou na altura a fazer isso tenha anexado quatro regiões do país vizinho. Nós votámos a favor desta resolução que condena a anexação destas quatro regiões de forma consciente, de forma soberana. Não fomos forçados a fazê-lo por ninguém, por absolutamente ninguém. Entendemos que a postura mais correcta seria aquela e assim aconteceu.
VOA: Há quem receia que com a aproximação dos Estados Unidos, possa surgir uma guerra fria em África. O Senhor Presidente partilha essa preocupação?
PR - O conceito de Guerra Fria num só continente, a meu ver, não existe. A Guerra Fria ou há ou não há, é global. Ou se vive a Guerra Fria e tem uma dimensão global, ou não se vive a Guerra Fria. Não existem guerras frias por continentes. Portanto, esse conceito de Guerra Fria em África não existe.
Estamos num mundo globalizado, em que há espaço para todos, não se pode dizer que o continente deve ficar refém de uma só potência. Existe o falso receio do domínio chinês no continente africano. E digo falso receio porque a presença chinesa que nós conhecemos, em África, é sobretudo a de créditos a investimentos públicos, em que as empresas chinesas suportadas por bancos chineses, públicos ou privados, na maioria públicos, vão para África executar empreitadas de infra-estruturas públicas. Nós não conhecemos grande investimento privado chinês no continente africano.
O domínio de África pela China aconteceria se houvesse um grande investimento privado chinês em África, e isso não existe. O que existe são execução de empreitadas de infra-estruturas públicas que acabam por ser propriedade dos Estados africanos que ficam endividados perante a China e têm que honrar com o seu compromisso e pagar a dívida.
VOA: A China tem aceite propostas de reformular o pagamento dessas dívidas de Angola ou não?
PR- Aceitou pelo menos uma vez, creio que foi em 2019. Não foi de forma isolada, não foi apenas ela. É um processo que envolveu as principais instituições financeiras internacionais: o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, o Clube de Paris. E a China, como membro dessas instituições, acabou também por se associar. Não tinha como deixar de o fazer.